Pelo resgate do humanismo no atendimento médico

Atuo há mais de 30 anos como médica oftalmologista e, há 18, comando uma clínica cidadã, que presta atendimento de alta qualidade a preço baixo para as classes C e D. Sei que a rotina diária do médico na contemporaneidade pode ser muito exaustiva e até penosa e, diante disso, me proponho a focar aqui em um valor que, ainda assim, precisa ser resgatado e reforçado com urgência na nossa classe: o humanismo no atendimento ao paciente.

Dentre as adversidades que dificultam a atuação do médico no Brasil, figuram os impasses financeiros com os planos de saúde, que impõem uma agenda extremamente lotada para a obtenção de valores incompatíveis com a responsabilidade e com a carga de trabalho, gerando insatisfação, bem como as dificuldades da administração pública, na figura do SUS (Sistema Único de Saúde) ‒ longas jornadas, sobrecarga, baixa remuneração, falta de medicamentos e até de materiais básicos e ausência de equipamentos de ponta. Quem segue carreira em consultório próprio ou em sociedade em clínica particular é obrigado a lidar com elevados custos de manutenção, sazonalidade de demanda e recrutamento periódico de bons funcionários, fatos que, não raro, podem representar muitos aborrecimentos e custos.

Imerso nesse cenário desanimador, o médico pode tender a automatizar seu atendimento, deixando de lado o valor essencial do tratar bem, de maneira atenta, humana, respeitosa, aquele cidadão que o procura necessitado de cuidados. E daí surge a iminente pergunta: afinal de contas, por que e para que nós optamos mesmo pela medicina em nossas vidas?

Hoje, não são poucas as críticas da população aos atendimentos-relâmpago, seja via convênio ou SUS, em que o profissional, robotizado e subjugado pela carga de trabalho diária, mal olha no olho do enfermo. A isso vale acrescentar que, lamentavelmente, existe também uma parcela de recém-formados que nutre forte preocupação em auferir logo uma altíssima remuneração na carreira, migrando muito cedo para áreas “mais rentáveis”, em detrimento de outras mais ligadas à prevenção ou ao diagnóstico de doenças graves, que demandam pesquisa e dedicação acadêmica.

Meses atrás, tive um mal-estar em viagem a terras norte-americanas e tive de procurar um hospital. O episódio me fez observar o quanto o olhar e a sensibilidade do médico vêm sendo substituídos lá, de forma indiscriminada e até indevida, pelo uso de máquinas e de exames sofisticados para uma simples dor de barriga. Enfermeiros medem pressão e temperatura e pronto. E o médico quase não conversa e pouco toca no doente e não faz uma anamnese dedicada. Espero, sinceramente, que essa prática distorcida, dependente do diagnóstico computadorizado e caro, não se torne rotina em nossa nação. Vislumbrando novos rumos para saúde brasileira, esse seria um péssimo caminho para trilharmos.

Ciente dessa realidade, tenho pautado minha vida profissional em três valores básicos que não podem faltar a um médico, qualquer que seja sua condição de trabalho: atenção, carinho e zelo pelo paciente. Esse tripé representa, em suma, o tratamento digno a qualquer cidadão. Sendo assim, venho irradiando essa visão por meio de um modelo de clínica social, que desenvolvi com o apoio de vários colegas em Uberlândia (MG). Eles atendem em suas clínicas particulares, mas dedicam parte de seu tempo semanal a consultas a R$ 100, com direito a retorno em 15 dias. Parte do segredo de sucesso está exatamente na solidariedade de profissionais experientes e reconhecidos que atendem a pessoas que não conseguiriam arcar com os custos de uma consulta no valor de mercado e, muito menos, manter os custos mensais de um convênio médico.

Não é tarefa fácil gerir esse sistema, mas ele tem crescido e se multiplicado nesses 18 anos, devido ao entendimento fundamental de que, antes de sermos médicos, somos cidadãos e de que, antes de sermos cidadãos, somos humanos. Portanto, o atendimento precisa ensejar sempre uma relação de igualdade e de reciprocidade, com sensibilidade, empatia e compaixão. O modelo da clínica cidadã, obviamente, não é a única saída para o sistema de saúde funcionar. Mas, com certeza, é uma alternativa relevante.

No entanto, minha mensagem principal aqui está mesmo ligada ao resgate da base da decisão pela carreira de medicina e pelo que ela guarda de mais edificante: a preservação da vida humana. Nós, médicos, temos de nos esforçar para equilibrar, cotidianamente, nossa preocupação com sobrevivência e lucro e o fato de estarmos diante de um país ainda tão desigual como o nosso. A própria classe médica tem o dever de buscar novas soluções nesse sentido, evocando sempre a nobre missão da nossa profissão, submetendo-se a exames críticos individuais periódicos e mobilizando os pares em discussões fundamentais como a carga tributária sobre os médicos. Podemos, por exemplo, pleitear contrapartidas de incentivo fiscal do governo para os profissionais que atendem à população mais desfavorecida.

Por fim, ressalto que, no Brasil, um quadro de desumanização no atendimento ao paciente provoca ainda mais danos quando estamos falando de classes C e D. Isto porque essa parcela já sofre, todos os dias, com vários desrespeitos somados, de habitação, saneamento, mobilidade, nutrição e educação. Por tudo isso, visando a um país mais saudável, sustentável, igualitário e feliz, nós, médicos, precisamos abraçar nossa parcela diária de responsabilidade social, resgatando com urgência o humanismo no atendimento ao paciente e propondo soluções boas para todos.

Jussara Mendes Lopes Matsuda, médica oftalmologista, diretora-presidente do IME – Clínica Cidadã, pós-graduada em gestão em administração e marketing em sistemas de saúde pela USP, finalista no desafio Feedback Labs, da organização internacional Ashoka, em 2014, vencedora do Prêmio Empresário Herói, da FIEMG (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais), em 2011, e finalista do Prêmio Empreendedor Social da Fundação Schwab/Folha de S.Paulo, em 2006.

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